Enquanto uns gritam "fake news!", o outro lado responde "cancelando" o adversário. Em clima de populismo, intolerância e demagogia, as regras do discurso entram em colapso. Mas há uma solução, opina Alexander Görlach.
Sejam liberais versus republicanos nos Estados Unidos, pró-Brexit versus anti-Brexit no Reino Unido: quando, apesar de todos os esforços, não é possível evitar um confronto, a coisa lembra um encontro imediato de terceiro grau. Um lado acusa o outro de disseminar fake news, ao que este responde "cancelando" seus atacantes.
"Fake news!", bradam os que alegam que uma elite de esquerda, cosmopolitas e a mídia estão reconfigurando a sociedade. Entre os que repetem esse canto de guerra, estão os seguidores do presidente americano, Donald Trump, ao afirmar que a pandemia de covid-19 não passaria de uma fraude dos democratas, não sendo, portanto, genuína, e sim "falsa".
Os assim difamados, por sua vez, traçam uma nítida linha divisória entre si e os outros. Definem-se com rigor palavras, seu significado e os contextos em que podem ser ditas, de forma que qualquer dissidente é punido com um banimento que lembra as excomunhões proferidas pela Igreja Católica na Idade Média.
Em 2015, o Nobel de Medicina inglês Tim Hunt teve um gostinho disso, depois de meter os pés pelas mãos com um comentário. Numa conferência, ele afirmou que as (mulheres) cientistas "se apaixonam por você, e quando você as critica, elas choram". Foram inúteis todas as suas desculpas por essa declaração imbecil, ele teve que devolver diversas distinções e perdeu o título de professor honorário. Bastou um lapso para Hunt e o conjunto de sua obra serem "cancelados".
Em tal clima de tensão social, não espanta que, mesmo num país como os Estados Unidos, conhecido por sua veneração extrema da livre expressão, não se tenha mais paciência para essa briga.
Um estudo de 2018 mostrou que os membros da ala republicana estavam cansados das proibições de fala que sentiam ser-lhes impostas, as percebiam como ataque à própria identidade e não estavam mais dispostos a aceitá-las. No espectro esquerdista, liberal, os consultados admitiram não dar mais conta de aprender e empregar todos os novos termos politicamente corretos com que seus colegas apareciam a cada dia.
Recentemente, intelectuais de prestígio mundial, como os autores Salman Rushdie, Margaret Atwood e J.K. Rowling, ou o linguista Noam Chomsky, assinaram uma carta aberta criticando duramente a ala liberal e seu gosto de "cancelar".
O escrito veio em reação à saída da comentarista conservadora Bari Weiss do The New York Times. Ela fora expressamente contratada após a eleição de Trump para assegurar que opiniões consideradas controversas pelo espectro liberal seguissem sendo publicadas no jornal, mas jogou a toalha depois de três anos, por ser impedida de cumprir exatamente essa função.
Uma sociedade em que proibições de fala abrangentes dominam, e o medo governa as línguas, acabará deixando de ser uma democracia. Mas, como reencontrar o caminho do debate construtivo nos EUA, Reino Unido, Alemanha e outros?
Em primeiro lugar, é preciso definir novamente o que são fatos. Desde a Antiguidade Clássica, distinguimos doxa, opinião, de episteme, conhecimento. Fatos, a base do saber, geram opiniões diversas. Uma opinião, contudo, não leva a conhecimento fundamentado.
Por outro lado, fatos empíricos, sozinhos, não resolvem problemas. Toda pesquisa de ciências sociais, por maior que seja a precisão metodológica ao realizá-la, termina com a pergunta: o que significam os dados assim compilados?
Aqui sempre houve diferentes abordagens e pontos de vista – e é preciso que haja. Para reconhecê-los, é preciso a autoavaliação saudável – nossos ancestrais chamavam isso "humildade" – de que nunca se pode saber tudo, e que por isso é também preciso escutar opiniões alheias.
Discurso é a mediação entre as diferentes interpretações possíveis dos fatos. E como fatos não são opinião, essas possibilidades têm limites. Quem se move além desses limites não está mais jogando segundo as regras do discurso. É certo que cada um tem direito à própria opinião, mas isso não implica que toda opinião assim expressa seja automaticamente verdadeira.
Quem valida a verdade de uma opinião não é quem a expressa, mas sim o poder lógico e verbal com que os fatos são apresentados, interpretados e avaliados.
Nos últimos 15 anos, despontaram, por todo o mundo democrático, protagonistas que gradualmente deslocaram os limites entre interpretação legítima e mera sensação visceral. Para que sua vitória parcial não culmine num triunfo, que ao mesmo tempo seria o fim da democracia, é preciso que, num grande esforço conjunto, os indivíduos de boa vontade, no espectro de esquerda, verde, liberal e conservador, reassumam o controle dos fatos. Uma vez que estes sejam arrancados das mãos dos populistas e demagogos, pode recomeçar uma luta justa e construtiva pelo melhor caminho para a sociedade democrática.
Alexander Görlach vive em Nova York e é membro sênior do Carnegie Council para Ética e Assuntos Internacionais e pesquisador sênior associado da Universidade de Cambridge, junto ao Instituto para Religião e Estudos Internacionais. Com doutorado em linguística e teologia, foi também bolsista e acadêmico visitante na Universidade de Harvard de 2014 a 2017 e acadêmico visitante na Universidade Nacional de Taiwan e na Universidade da Cidade de Hong Kong de 2017 a 2018.
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